Em meio a tantos acontecimentos neste ano pode até ser difícil de se perceber, mas os governos de diversos países — entre eles o Brasil — estão em meio a discussões e decisões que vão revolucionar a forma como as pessoas trabalham, se relacionam e vivem.
Trata-se da implementação da tecnologia de quinta geração de telecomunicações (5G). À primeira vista, o 5G é apenas uma atualização dos sistemas de 4G já existentes no Brasil — o uso de frequências de rádio outorgadas pelo governo a operadoras de telefonia móvel para transmissão de dados digitais.
Mas na prática o 5G será muito mais do que isso. A velocidade esperada nas conexões é da ordem de 10 a 20 vezes maior do que a tecnologia do 4G. Esse salto de eficiência permitirá mudanças drásticas na forma como a sociedade funciona.
Um exemplo, entre centenas de possibilidades, é o desenvolvimento de carros autônomos — guiados por robôs e sem motoristas — que é uma das maiores apostas da indústria automotiva para o futuro.
A tecnologia 5G permitiria interligar os carros em rede, organizando todo o tráfego de veículos de forma segura e sem a necessidade de motoristas para tomarem decisões.
Pressão sobre o Brasil
Em qualquer cenário, as decisões sobre um leilão dessa magnitude — que será o maior já realizado no Brasil e um dos maiores do mundo — já seriam polêmicas e difíceis.
Mas para piorar, o Brasil terá que decidir sobre como implementar o 5G em meio a uma das disputas mais acirradas da guerra comercial entre Estados Unidos e China.
O governo do presidente Jair Bolsonaro vem sendo pressionado pelas duas superpotências mundiais. O presidente americano, Donald Trump, chegou a falar abertamente, em julho, que está em campanha contra os chineses na questão.
O centro da disputa é uma empresa chinesa, a Huawei, que é hoje líder global na tecnologia 5G.
O mercado de telecomunicações brasileiro é dominado por quatro operadoras gigantes (Vivo, Claro, TIM e Oi) que oferecem serviços de celular aos brasileiros. Mas por trás desses serviços, há uma rede de equipamentos tecnológicos que são fornecidos às operadoras por apenas três empresas: a sueca Ericsson, a finlandesa Nokia e a Huawei. No Brasil, como em diversos países do mundo, a rede de 4G conta com tecnologia destas três empresas.
Mas nos últimos anos os EUA iniciaram uma ofensiva contra a Huawei, que segundo os americanos representa um perigo de segurança nacional aos países que comprarem seus equipamentos.
A acusação é baseada na seguinte lógica: se toda a sociedade estiver interconectada usando equipamento de uma empresa chinesa — o que incluiria sistemas de trânsito, de comunicação ou até mesmo de eletrodomésticos "inteligentes" dentro dos nossos lares — todos nós estaríamos vulneráveis a espionagem pelo governo da China.
A Huawei é uma empresa privada, mas uma lei de segurança aprovada pela China em 2017 permite, em tese, que o governo de Pequim exija dados de companhias privadas, caso a necessidade seja classificada como importante para soberania chinesa.
Os americanos querem que o Brasil adote uma licitação que exclua o uso de equipamentos da Huawei por parte das operadoras — algo que já foi adotado em outros países do mundo, como Reino Unido, Japão e Austrália.
A China nega todas as acusações e diz que o único interesse dos EUA é minar o crescimento tecnológico chinês, que vem fazendo face aos americanos.
Ambos os lados da disputa sugerem que o Brasil poderia ser vítima de sanções de um lado ou de benesses do outro, dependendo de como o país decidir se posicionar.
O Brasil pretende realizar a licitação do 5G em maio do próximo ano. E o presidente Jair Bolsonaro declarou esta semana que será ele quem decidirá sobre a questão da Huawei e "ponto final".
Mas o que o Brasil tem a ganhar ou a perder, caso ceda às pressões americanas?
Ganhar
Até agora, o principal incentivo para banir a Huawei é o alinhamento com os EUA.
Também está subentendido que junto com esse alinhamento poderia vir algum tipo de ganho financeiro na relação bilateral.
Na terça-feira, autoridades brasileiras receberam uma delegação do governo americano em Brasília para assinatura de uma carta de intenções na qual o EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos Estados Unidos, sinaliza que poderá investir mais de R$ 5 bilhões em projetos de diversas áreas — "especialmente em telecomunicações", segundo um comunicado do governo americano.
Outras duas coisas chamaram atenção no evento. Primeiro a presença do assessor de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brein, em Brasília, em um evento que deveria ser apenas, em tese, entre autoridades do setor econômico e financeiro.
Outro ponto foi o discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, na cerimônia da assinatura dos acordos. Após frisar que o Brasil comercializa tanto com EUA como com a China, o ministro fez menção direta à preocupação com segurança: "Então nós sabemos quem são nossos parceiros geopolíticos e, ao mesmo tempo, praticamos comércio com todo mundo. A nossa aproximação com os americanos foi sempre, está sendo, com base não só em resultado econômico, mas também em segurança".
Em outro evento em Brasília esta semana, o assessor econômico da Casa Branca, Larry Kudlow, disse que Washington "encoraja o Brasil a observar a China com atenção em relação a todo tipo de tecnologia, de telefonia e de 5G".
Os americanos não fazem nenhuma sugestão explícita sobre apoio financeiro ao Brasil caso Brasília opte por banir a Huawei da sua rede de 5G.
Mas em fevereiro deste ano, o vice-presidente americano, Mike Pence, sugeriu que a questão Huawei pode trazer prejuízos econômicos aos que tomarem posições contrárias a Washington.
Naquela ocasião, o Reino Unido havia anunciado que seguiria trabalhando com a Huawei na adoção do 5G. Pence disse que a Casa Branca estava "profundamente desapontada" com a decisão britânica, e lembrou que EUA e Reino Unido estavam em vias de começar negociações para um tratado de livre comércio, agora que os britânicos deixaram a União Europeia.
Perguntado sobre se a questão da Huawei colocaria um fim nessas negociações, Pence respondeu: "Veremos".
Em julho, o Reino Unido acabou revertendo sua decisão, o que agradou os americanos. Não só a Huawei será banida da rede de 5G, como o país prometeu retirar todos os equipamentos da gigante chinesa de sua rede de telecomunicações até 2027.
Existe também uma grande incógnita sobre o futuro da guerra comercial entre EUA e a China que só começará a se resolver após novembro. Até agora a briga contra a Huawei tem sido uma bandeira do presidente Donald Trump. Mas analistas não têm clareza sobre como Joe Biden se posicionaria em relação à Huawei caso ele vença as eleições de novembro, já que o democrata não sinalizou qual é sua posição em relação ao tema.
Outro ganho potencial para o Brasil, caso venha a concordar com a posição americana, seria em relação à segurança nacional — caso as preocupações levantadas pelas agências de inteligência sejam acertadas.
Os EUA não são os únicos países a banir o equipamento Huawei. A preocupação com os equipamentos chineses surgiu primeiro em 2018 em um relatório da "Five Eyes" — uma aliança entre as agências de inteligência de Austrália, Canadá, Reino Unido, Nova Zelância e EUA.
Desde então, diversos países seguiram as recomendações de não trabalhar com a Huawei. É o caso de Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Itália, França, República Tcheca, Polônia, Estônia, Romênia, Dinamarca, Letônia e Grécia. A Alemanha e a Índia também estariam considerando seguir o mesmo caminho. E a Suécia (país da Ericsson, rival direta da Huawei) anunciou esta semana que também vai banir a empresa chinesa da sua rede de 5G.
Nesta semana, um novo relatório feito por um comitê do Parlamento britânico sugeriu que existe "claro indício de conluio" entre a Huawei e o "aparato do Partido Comunista chinês". A Huawei criticou as conclusões do relatório britânico.
Perder
Mas tomar uma atitude contra a Huawei — mesmo agradando Washington — também trará prejuízos para o Brasil.
O mais evidente deles é o prejuízo econômico. O Brasil já está atrasado no leilão de sua rede 5G. O atraso foi provocado por um problema técnico — algumas das frequências que serão colocadas em leilão são as mesmas de antenas parabólicas, o que gerou um impasse entre empresas de televisão e telefonia.
Banir a Huawei da rede — ou retirá-la completamente, como os britânicos pretendem fazer — custaria tempo e dinheiro. Não há estimativas para o caso brasileiro, mas no Reino Unido um estudo indica que o banimento à Huawei poderá retardar a implementação do 5G em até três anos, com custo superior a 18 bilhões de libras (mais de R$ 130 bilhões).
Nesta semana, o presidente da Huawei no Brasil, Sun Baochang, disse ao jornal Folha de S. Paulo que os operadores teriam que pagar mais para substituir seus equipamentos, caso o Brasil opte por banir a empresa chinesa, e que esses custos seriam repassados aos consumidores.
Esse atraso também retardaria a competitividade da economia brasileira, já que indústrias e empresas ficariam para trás em relação aos demais países que já teriam o 5G. O Brasil é o quinto maior mercado de telecomunicações do mundo, e dados oficiais mostram que há 231 milhões de celulares no pais — ou 94 celulares para cada 100 brasileiros.
Existe também o risco de o Brasil desagradar — e até mesmo receber retaliações — da China com a decisão.
A embaixada chinesa em Brasília emitiu um comunicado esta semana condenando as declarações feitas por autoridades americanas em visita ao Brasil.
"Recentemente, um pequeno número de políticos americanos, desprezando os fatos e forjando uma série de mentiras, vem lançando ataques difamatórios contra o 5G da Huawei. Tem utilizado o poder de estado para impedir as operações legítimas das empresas chinesas de alta tecnologia, abusando no pretexto de segurança nacional", diz a nota.
A embaixada chinesa também destacou a importância das relações econômicas.
"A China tem sido o maior parceiro comercial do Brasil por 11 anos seguidos. É a maior fonte de superávit comercial e um dos principais investidores do Brasil. (...) Temos a certeza de que as nossas relações não serão desviadas do trilho de desenvolvimento saudável e estável por qualquer interferência externa."
A China é hoje a principal fonte de superávit comercial do Brasil no mundo, com saldo positivo de US$ 3,2 bilhões até julho. Já com os Estados Unidos, o Brasil acumula um deficit comercial de US$ 3,1 bilhões até julho.